A História do Cangaço: Do Fenômeno Social à Lenda Cultural
O Cangaço, um movimento que marcou profundamente a história do Nordeste brasileiro, transcende a mera imagem de banditismo. Originado em meados do século XIX, o fenômeno foi moldado por um complexo cenário de desigualdade social, seca e ausência do poder público, resultando em figuras que, para muitos, tornaram-se símbolos de resistência e justiça.
Adriano Ferrera
11/4/20255 min read


As Origens e a Vida no Sertão
O termo "cangaceiro" surgiu por volta de 1834, inicialmente como um apelido pejorativo para indivíduos que optavam pela vida no sertão em detrimento das cidades costeiras. A origem da palavra é frequentemente associada à "canga," peça de madeira usada nos bois. Acredita-se que isso se deva à maneira como os cangaceiros carregavam seus fuzis sobre os ombros, como se fosse uma canga, ou pelo costume de amarrar todos os seus pertences ao corpo.
O primeiro a agir de forma semelhante a um cangaceiro teria sido José Gomes, conhecido como "Cabeleira," no final do século XVIII em Pernambuco. No entanto, o Cangaço como fenômeno social ganhou força a partir da década de 1870. Nessa época, o sertão nordestino enfrentava condições econômicas e sociais terríveis, tornando-se uma "terra sem lei" dominada pelos poderosos "coronéis" e seus "jagunços". Esses jagunços eram contratados para intimidar trabalhadores rurais e pequenos agricultores que ousassem contrariar os interesses dos coronéis, chegando a invadir terras e cometer assassinatos.
A falta de proteção por parte das autoridades e a ineficácia do sistema político, que geralmente beneficiava os mais abastados, criavam um sentimento generalizado de abandono. Diante desse cenário, a população tinha poucas opções: sujeitar-se à opressão, migrar para as grandes cidades em busca de uma vida melhor (muitas vezes sem sucesso) ou, então, fazer justiça com as próprias mãos.
Os cangaceiros, que geralmente formavam bandos com até 15 homens (mas podiam ser maiores), conheciam profundamente a Caatinga, o que lhes permitia fugir e emboscar inimigos com maestria. A vestimenta era adaptada às condições adversas do sertão, com roupas de brim resistente em cores terrosas para camuflagem e proteção contra espinhos e o sol forte. Peças de couro, como as usadas por vaqueiros, eram comuns. Os chapéus, de couro ou feltro, com abas largas, tornaram-se um ícone, conhecidos hoje como "chapéu de cangaceiro".
No pescoço, um lenço (A Jabiraca) podia ser usado para proteger do sol, da poeira ou para disfarçar o rosto. A necessidade de carregar tudo o que possuíam os levava a usar o burnal, uma bolsa de tecido com vários bolsos para alimentos e roupas, e a capanga, de couro, para higiene, remédios e objetos de devoção. As cartucheiras, com capacidade para cerca de 50 balas cada, eram usadas na cintura e cruzadas no peito. O armamento incluía rifles, revólveres ("parabelo") e facas como a peixeira.
O Código e o Equipamento do Cangaceiro


Cangaceiros: Bandidos ou Justiceiros?
A dualidade na percepção dos cangaceiros é um ponto central em sua história. Para a população mais pobre, que pouco possuía, eles não eram apenas criminosos. Em um contexto de ausência estatal, os cangaceiros eram vistos como justiceiros que tomavam as rédeas da situação. O sentimento de vingança contra as injustiças sofridas por muitos cangaceiros corroborava essa visão, sendo um ato de rebeldia contra um sistema opressor.


Algumas figuras Icônicas do Cangaço
· Jesuíno Brilhante: Conhecido como o "cangaceiro romântico," destacou-se por sua educação e ações em favor dos pobres, distribuindo alimentos durante a seca de 1877.
· Anésia Cauaçu: Uma rara mulher a liderar um bando, comandou cerca de 100 homens e mulheres na Bahia. Era notável por sua habilidade com armas e por desafiar normas sociais ao usar calças e montar a cavalo como os homens.
· Lampião (Virgulino Ferreira da Silva): O mais famoso cangaceiro, alcunhado "Rei do Cangaço." Nascido em Pernambuco em 1898, Lampião era alfabetizado e conhecia profundamente o sertão. Sua entrada no cangaço se deu após a morte de seu pai em 1921. Seu bando atuava em seis estados, e ele acumulou riqueza através de saques e negociações.
· Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira): Conheceu Lampião em 1930 e se tornou a primeira mulher a integrar seu bando, vivendo uma história de amor e resistência que a eternizou na cultura popular. Ela foi morta junto com Lampião em 1938.
Corisco e Dadá: Corisco foi um dos braços direitos de Lampião, conhecido pela crueldade. Após a morte de Lampião, ele e sua companheira, Dadá, continuaram atuando. Corisco foi morto em 1940.
Dadá foi ferida na perna, tendo-a amputada e ainda sobreviveu por muitos anos utilizando-se somente de seu nome de batismo: Sérgia Pereira.


O Legado Cultural do Cangaço
O Cangaço deixou um legado indelével na cultura brasileira. As façanhas dos cangaceiros inspiraram inúmeras obras na literatura de cordel, na arte popular, em minisséries de TV e histórias em quadrinhos. No cinema, filmes como "O Cangaceiro" (1953), que ganhou o prêmio de melhor filme de aventura no Festival de Cannes, e obras de Glauber Rocha como "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "O Dragão da Maldição contra o Santo Guerreiro", imortalizaram a estética e as narrativas do Cangaço. O movimento inspirou também um subgênero cinematográfico conhecido como "Nordertern," em alusão aos westerns norte-americanos, explorando a bravura e os conflitos do sertão.
A figura do cangaceiro, em toda a sua complexidade, continua a gerar debates: eram heróis ou vilões? Bandidos ou vítimas de um sistema social injusto? A memória do Cangaço perdura, alimentando o imaginário popular e a reflexão sobre as contradições da história brasileira.
Além disso, alguns cangaceiros ganhavam a simpatia popular ao dividir parte do que roubavam com os mais necessitados, agindo como uma espécie de "Robin Hood" sertanejo. Essa relação de cumplicidade levava muitos a oferecerem comida e abrigo, sendo chamados de coiteiros. Curiosamente, coiteiros também podiam ser fazendeiros que preferiam ter os cangaceiros como aliados contra coronéis rivais.
Os inimigos dos cangaceiros eram as volantes, colunas policiais enviadas para combatê-los, cujos membros eram pejorativamente chamados de "macacos".
